Quais alimentos estão relacionados com as crises de enxaqueca?
O que é a enxaqueca?
A enxaqueca é uma cefaleia primária, ou seja, um tipo de dor de cabeça que não tem uma causa estrutural responsável pelo quadro. Ela acomete cerca de 10% da população mundial e caracteriza-se por ser recorrente, muitas vezes, incapacitante, podendo se apresentar com ou sem aura (que é um fenômeno neurológico que ocorre antes da crise).
A apresentação clínica de uma crise de enxaqueca varia entre os pacientes, incluindo a intensidade da dor (que pode ser de moderada a intensa), o tipo de dor (normalmente pulsátil) e o os sintomas associados, como fotofobia, fonofobia, osmofobia, náuseas, vômitos e sensibilidade ao movimento.
Doenças associadas
A enxaqueca está associada a várias doenças, incluindo distúrbios psiquiátricos (por exemplo, depressão e ansiedade), distúrbios do sono, fadiga, diabetes, obesidade e doenças cardio e cerebrovasculares.
Por que a enxaqueca ocorre?
Nos últimos anos, tivemos evoluções importantes no conhecimento da fisiopatologia da enxaqueca, como o envolvimento do hipotálamo e os anticorpos CGRP no mecanismo da dor, porém seguimos sem uma elucidação mais concreta do funcionamento da doença.
A literatura sugere que os fatores dietéticos podem desempenhar um papel em vários mecanismos possíveis, como um gatilho ou um evento premonitório das crises.
O estudo de hoje
Hoje trazemos uma revisão sistemática de 43 artigos que buscaram identificar a relação entre fatores dietéticos e enxaqueca. O mais importante é saber que a maioria dos estudos incluídos (81,4%) eram observacionais, o que quer dizer que servem apenas para GERAR HIPÓTESE, mas não nos permitem tirar conclusões concretas. Os poucos ensaios clínicos randomizados incluídos (apenas 8) eram de baixa qualidade. A comparação entre os estudos também foi limitado, pois alguns deles se concentraram em apenas um gatilho específico (como o álcool), enquanto outros avaliaram diversos gatilhos. Além disso, alguns estudos sugeriam uma lista pré-estabelecida de gatilhos para os pacientes avaliarem, enquanto em outros os pacientes tinham que lembrar dos gatilhos por conta própria. Nenhum estudo envolveu cegamento de pacientes ou avaliadores. Devido à natureza observacional ou uso de questionário nesses estudos, os estudos eram suscetíveis ao viés de memória, ou seja, dependiam da capacidade do participante de recordar, com precisão dos gatilhos alimentares (você lembraria de tudo que comeu no mês passado?).
Quais foram os achados aparentemente mais relevantes?
Períodos mais longos de jejum parecem ter relação com as crises de enxaqueca. Em uma pesquisa, observou-se um aumento da prevalência de enxaqueca entre aqueles que pularam o café da manhã. Em outra, realizar lanches noturnos e jantar mais tarde reduziram as chances de dor de cabeça. Um estudo mostrou que durante o mês do Ramadã (quando os muçulmanos jejuam do nascer ao pôr do sol), houve um aumento no número médio de dias de enxaqueca entre pessoas que sofrem de enxaqueca em comparação com o mês seguinte. Embora a qualidade dos dados tenha sido, geralmente baixa a média, esses estudos sugerem que manter níveis estáveis de glicose comendo pequenas refeições mais frequentes pode ser uma estratégia para prevenir dores de cabeça desencadeadas pelo jejum.
- O tabagismo foi associado com as crises de enxaqueca.
- O álcool foi um dos gatilhos relatados com maior frequência nesta revisão. No entanto, alguns estudos também relataram uma correlação inversa entre o consumo de álcool e o risco de enxaqueca. Os achados inconsistentes sugerem que alguns indivíduos ou pessoas de culturas específicas podem ser mais suscetíveis ao álcool como gatilho. As inconsistências também podem ser atribuídas ao fato de que as pessoas com enxaqueca geralmente limitam a ingestão de álcool porque já ouviram dizer que álcool é um gatilho. As pessoas com enxaqueca podem se beneficiar da limitação do álcool, principalmente do vinho tinto, se isso for identificado como um gatilho para aquele indivíduo.
- Alimentos integrais parecem ser melhores. Um estudo de coorte relatou que o aumento do consumo de pão integral e macarrão integral e a diminuição do consumo de pão branco foi associado a uma redução significativa na frequência de ataques de enxaqueca e uso de medicamentos.
- Frituras podem estar associadas às crises. Um estudo relatou uma associação positiva do consumo de frituras com enxaqueca.
- Alimentação saudável X padrão ocidental. Um estudo mostrou que a frequência das crises de enxaqueca é inversamente proporcional à adesão ao padrão alimentar “saudável” (alto consumo de frutas, peixes, conserva de legumes, verduras, e leguminosas) e, diretamente proporcional à adesão ao padrão alimentar “ocidental” (alto consumo de bebidas a base de cola, carnes processadas e fast foods).
- Alergênicos Alimentares Comuns. Um estudo observacional mostrou que a alimentação com alérgenos comuns, como peixe, ovos, oleaginosas, laranja e morango, não foram relacionados a crises de enxaqueca.
- Cafeína. Diversos estudos relataram que a cafeína pode ser um gatilho para crises de enxaqueca.
- Gatilhos dietéticos —Fatores dietéticos, incluindo fome (53,9%) e consumo de leite e queijo (10,3%), chocolate (18,3%) e alimentos ricos em glutamato monossódico foram associados à enxaqueca em alguns estudos.
Dietas Específicas Ajudam?
Dieta de baixo índice glicêmico. Em um estudo randomizado e controlado, a restrição a uma dieta de baixo índice glicêmico, reduziu a frequência média e a gravidade dos ataques de enxaqueca.
Teor de lipídios na dieta. Em outro estudo, uma dieta com baixo teor de lipídios (
Dieta Cetogênica. A administração de dieta cetogênica por 1 mês também foi significativamente relacionada à redução na frequência e duração médias dos ataques em comparação com a linha de base, conforme mostrado em um pequeno estudo observacional prospectivo.
Ômega-3.Maior ingestão de ácidos graxos poliinsaturados ômega-3 foi significativamente associada com menor prevalência de dor de cabeça severa ou enxaqueca.
Dieta DASH. A maior adesão à dieta DASH exibiu uma prevalência 30% menor de dores de cabeça severas em comparação para aqueles com a adesão mais baixa.
Restrição de gatilhos. Outro estudo mostrou que a implementação da dieta com restrição de gatilhos comuns como o trigo, laranja, ovo, cafeína, queijo, chocolate e leite em pessoas com enxaqueca reduziu a frequência, a duração e a gravidade das crises.
No entanto os estudos NÃO suportam o uso de uma dessas dietas ao invés de outras em pessoas com enxaqueca!
Conclusão
Nesta revisão sistemática da literatura sobre o efeito da dieta na enxaqueca, foram encontradas EVIDÊNCIAS LIMITADAS DE ALTA QUALIDADE. As evidências sobre o efeito dos padrões dietéticos em pessoas com enxaqueca variaram MUITO nestes estudos. Assim como temos relatos de estudos em que não houve nenhum impacto desfavorável de qualquer fator nutricional, outros observaram a associação entre comportamentos e gatilhos alimentares na ocorrência de enxaqueca. Vários estudos identificados nesta revisão sugerem que a eliminação de trigo, laranja, ovo, chocolate, frituras, laticínios, cafeína, alimentos processados, alimentos ricos em glutamato, álcool e que, evitar longos períodos de jejum, podem ser benéficas na redução dos sintomas e na frequência da enxaqueca. No entanto, são necessários mais ensaios clínicos randomizados e estudos de longo prazo envolvendo um maior número de pacientes para confirmar os resultados preliminares relatados por estes estudos sobre o efeito da dieta na enxaqueca.
Um pouco mais de ciência
Estudos da última década que avaliaram o funcionamento cerebral em pacientes com enxaqueca episódica, através imagens funcionais (PET e Ressonância funcional), demonstraram haver um envolvimento hipotalâmico, com hiperatividade, mesmo nos períodos entre as crises. Esses achados foram importantes para o surgimento de hipóteses de envolvimento desse local do cérebro como responsável por sintomas, antes sem explicação, como fadiga, alterações do humor e desejo por determinados alimentos.
A dieta DASH tem como principal raciocínio a modulação de pressão arterial, para isso ela prega a prioridade de alguns grupos alimentares, como os vegetais, as saladas, frutas, cereais, leite e derivados que possuem baixa quantidade de gordura e sódio.
Os fenômenos premonitórios podem anteceder a crise de dor de cabeça em até 3 dias, portanto fica difícil a caracterização de determinado alimento como gatilho ou dizer se a ingestão daquela substância foi apenas uma apresentação do aumento de apetite como parte dos pródomos da enxaqueca. Talvez essa resposta nunca seja obtida. De qualquer maneira, precisamos de mais estudos com melhor desenho para determinar essa relação alimentar com a enxaqueca.
Referência: The Role of Diet and Nutrition in Migraine Triggers
and Treatment: A Systematic Literature Review. Headache. 2020.
Este texto foi escrito pela endocrinologista Luciana Péres (@endocrinoluperes) em colaboração com o neurologista Marcelo Raffo (@marceloraffo).